segunda-feira, 8 de março de 2010

O guarda do banco, meu companheiro de caminhada.

Bem me lembro de um final de tarde caminhando pela Vanderbilt Avenue em Nova York, quando fui abordado na esquina com a 42, quase em frente ao Mello (o Mello aqui é meio gíria de Mellon Bank, mas insisto em assim pronunciar com intimidade, pois me considero meio parente via lado materno do fundador há mais de seis gerações, mas... não há nenhuma chance de herança). Era o ano de 1973 e nevava mesmo naquele janeiro super frio. Pensei que era um pedinte enregelado, não era, depois pensei que era assalto, também não era. O homem me oferecia crack por um preço bem barato. Estou falando de crack, coisa que aqui nem se conhecia. Reparei à distância um policial que observava a cena. Nem pensei em chamá-lo; os americanos chamavam os latinos, como eu, de cockroack (ou corochos como mesmo diziam os portorriquenhos) o que quer dizer “barata”, aquele inseto que habita o lixo. Como “barata esperta não atravessa galinheiro” era óbvio que eu não tinha nada que me meter nos “assuntos internos” dos outros (“assuntos internos” é como lá chamam a Corregedoria de Polícia). Não havia câmeras filmando, não havia nada a não ser transeuntes que passavam e não davam a mínima para o que se passava. Talvez pensassem: mais um latino viciado. Diferentemente do Michael Jackson não podia esconder minha morenice, era latino mesmo. Pude perceber então que o que havia era a existência de uma sociedade leniente, conivente e alienada. Talvez por vergonha, pois naquela época muitos dos “rapazes” que embarcaram heróis para o Vietnam voltavam dependentes de droga, derrotados, tanto militarmente quanto moralmente. Talvez pela parte saxônica em suas origens, talvez pelo fato que valorizavam o dinheiro mais do que tudo, não fora por acaso que Reagan oito anos depois mandou o Estado americano às favas; inaugurou o cassino global. Não posso precisar as causas daquela decadência, que depois soube ter sido minimizada pelo prefeito Rodolfo Giuliani com o programa “Tolerância Zero” à qual está subordinada a NYPD (New York Police Depart.), polícia municipal, que deve estar pagando pensão para aquele policial que me observava nos idos de 1973.

Passei uns oito anos depois na mesma esquina e já havia algumas câmeras apontando para aquele lugar em que outrora eu fora abordado como potencial consumidor de uma droga que ainda não havia chegado às ruas da minha cidade maravilhosa. Ninguém me oferecera mais uma pedra de crack, não fui abordado por ninguém, apenas o ponto de venda, a “estica”, mudara de lugar. O pessoal da segurança do banco botou os traficantes pra correr dalí, acabei sabendo por um segurança antigo que “hablava castellano” e insistia em praticar o idioma comigo, toda vez que ia lá pegar minhas diárias de viagem. Jamais consegui convencê-lo que se falava português por aqui. Não havia jeito, português era alguma língua lá da Europa. Mas ele mesmo, descendente de portorriquenhos, não o policial, tinha posto pra correr aqueles restos humanos que vendiam crack pra custear o seu consumo, alguns retornados do Vietnam com o peito cheio de medalhas. Parei naquela esquina e fiquei pensando naqueles meus compatriotas, (excluí o da minha casa, diga-se de passagem, era muito íntimo, muito), que retornaram da Itália em 1945 com a sensação de dever cumprido e prestigiado pelos seus. O lá de casa jamais se perdoou por ter matado jovens que nem ele. Morreu com esta mágoa cinqüenta e cinco anos depois. Começou a nevar, fui embora.

Fico refletindo qual teria sido a diferença entre a oferta escancarada dos anos 70 e a mais controlada do anos 80 ou mesmo 90. O que fez reduzir aquele escândalo? As câmeras? O segurança do banco? O “Tolerância Zero” do Giuliani? A conscientização da população? Ou todas acima sinergicamente combinadas?
Para mim parece claro que problemas desta dimensão e desta complexidade não comportam soluções únicas e simplistas. Implicam na articulação de diversos atores, os diferentes agentes de mudanças; e isto tem que ser grifado: agentes de Mudanças. De nada adianta a tentativa, por maior que seja a boa vontade em empreendê-la, por maior que seja o rigor em imprimi-la, se as mentes dos atores estiverem organizadas segundo valores e cânones do passado. Quem quiser abordar e resolver problema desta magnitude terá de partir de referenciais muito mais abrangentes do que a história escreveu; pois ela mesma continha as causas do problema, visto que este problema, sendo causa de muitos outros, é conseqüência de vários erros sociais e políticos que a antecedem. Sequer existe a justificativa no caso novayorquino de falta de recursos para resolvê-los. Esta sociedade era incapaz de se defender de si mesmo. Vinte anos depois se confirmava esta incapacidade. O ano de 2001 serviu como marco referencial da gigantesca aplicação de tecnologia e a incapacidade de fazê-la funcionar sinergicamente na solução de um problema. Era mais fácil colocar um veículo em Marte do que padronizar os rádios dos Bombeiros e sincronizá-los com os dos policiais que desciam as escadarias das torres do WTC. Mais de cinco mil mortos e uma destruição sem sentido, simplesmente porque no seio de sistema de segurança, suas câmeras, computadores e toda parafernália eletrônica, habitavam as causas da sua destruição. As mesmas causas que levaram o herói esquecido a vender crack em meio ao descaso dos transeuntes, em meio ao silêncio covarde dos que entravam e saiam do banco, aplicando suas economias na jogatina que se inaugurava, alardeada pelos que não mais podiam aplicar em ações das fábricas de armamentos que deixaram de ser consumidos no Vietnam. A segurança tinha sido orientada a proteger o banco e tolerou a ação indevida de um agente privado, pois o Estado estava ocupado com coisas “mais importantes” como os “Iran contra”, sem se perceber que a explosão do 747 da PANAM em Lockerbie, na Escócia em 1988, já tinha anunciado o que estava por vir. Em 1993, quando tentaram explodir as fundações do WTC, aí foi escandaloso. Todos os atentados precedentes foram financiados por ações quase inocentes: venda de produto pirata, cd´s e outros mais; exploração de jogo ilegal, exploração de casas noturnas suspeitas, e especulação na bolsa, e por aí vai. Ou seja, financiadas por atividades ilegais, ou quase, mas toleradas pelo senso comum, pelos cidadãos de bem.

Este artigo tem também esta finalidade, a de chamar atenção para o fato que a tecnologia é um fantástico catalisador de mudanças, desde que aplicado na reação certa, na quantidade certa, na forma correta, na temperatura conveniente para um fim definido. Fiz questão de citar o caso americano por ser mais do que emblemático; abundância de tecnologia e escassez de inteligência. Inteligência no sentido policial e no sentido comum.

Já vi pela internet cidades que instalaram milhares de câmeras de segurança distribuídas segundo alguma forma. Acredito que tenha existido uma redução da criminalidade de rua nas áreas cobertas pelo seu raio de alcance, tanto pela inibição, quanto pelo favorecimento da ação policial corretiva e preventiva. O aumento de número de câmeras espalhadas segundo uma estratégia de máxima cobertura terá uma conseqüente redução da criminalidade de rua, é senso comum. E aí vem a pergunta que é obvia, mesmo para quem não pratica a ação policial:- E as áreas onde a câmera não cobre, ou nem pode ser instalada? Estas áreas, evidentemente, dependerão da ação de outros agentes causais; sejam estes de natureza assistencial ou mesmo as que se ausentaram, o saneamento, a coleta de lixo, a escola de qualidade e, principalmente, a atenção dos demais concidadãos, que vem fechando os olhos para não ver até que ponto chega a alienação, o descaso, igual aqueles transeuntes que me olhavam como mais um viciado latino em Nova York.

Creio que o aprendizado é um processo contínuo, quando se parte das experiências e erros alheios e mesmo dos próprios. Experiências estas sempre realizadas no processo de solucionamento de problemas, sempre dirigidas ao útil; esteja o problema no plano prático ou no plano teórico. Mas para que o processo de aprendizado se instaure no indivíduo ou na coletividade, será necessária a estimulação de potencialidades daquele específico indivíduo ou do grupo, diria Vygotsky, no processo de contextualização do problema estudado através das informações que até ele chegam. Ressalta-se ainda a importância da contextualização da informação, no sentido de ofertar adequadamente diferentes visões sobre o objeto de estudo, gerando conflitos de idéias, essenciais para a acomodação do conhecimento. Fico me perguntando quanto de reflexão ou mesmo de debate foi despendido após Lockerbie, após 1998 e outros episódios. Foi o suficiente? Foram, o debate e a reflexão, precedidos da seleção dos elementos potenciais dos agentes da segurança? Foram aplicados conceitos vigentes, ou foram exercitados novos conceitos, novas estratégias, novas abordagens, partindo das potencialidades daqueles que praticavam a segurança? Estas questões terão de ser colocadas em qualquer que seja o fórum ou projeto relativo à segurança pública. E serão inevitáveis para a maioria das grandes capitais do mundo, mesmo nos países desenvolvidos, que se deparam com questões de exclusão social, crime organizado, descaminho de adolescentes, disseminação do uso de drogas sintéticas, pedofilia e um rol de maldades que não tem fim. Em todos os casos, a concatenação de fatores que se originam no seio da sociedade, nas suas disfunções, no ciclo vicioso das suas insuficiências, se realimentando em favor do crime, que em última instância, qualquer que seja o nível da riqueza da sociedade, é fruto da acomodação, da preguiça, e sempre, da conivência de alguém que beneficia de alguma forma, ou seja, da corrupção. Romper este ciclo vicioso é um desafio para todos os estados, todos países, principalmente aqueles onde a aglomeração se combina com a exclusão social. Só com a inteligência é possível quebrar este ciclo de dependências. Conforme Beltrame, 2008: Acima de tudo, romper a barreira imposta pelo crime requer uma virtuosa conjugação entre repressão e inteligência, prevenção e ataques à corrupção, integração entre práticas policiais e ações sociais em ambientes convulsivos. Se isso não ocorrer, a polícia acaba "enxugando gelo". A citação serve para embasar o conceito de sinergia positiva, por quem mais está envolvido nos problemas e nas soluções da Segurança Pública no nosso Estado. A expressão “enxugando gelo” bem expressa a resultante final da ação inócua, improdutiva e que consome recursos, até caros.

Esta conjugação dos dois agentes, um repressor, outro preventivo está perfeitamente em fase com o princípio da estabilidade dos sistemas. A degradação natural dos sistemas somente pode ser evitada com ação corretiva, isolando os agentes de “perda de energia”, os agentes desagregadores. A manutenção do estado organizado somente pode ser conseguida com aporte de energia. Por um lado, a ação que controla e limita a degradação, por outro, a ação que evita e previne o processo de decomposição. Estas duas vertentes têm de estar presentes no desenvolvimento e na concepção dos nossos projetos.

No desenvolvimento de projetos desta natureza, por maior que seja o aporte de tecnologia, vários componentes de estrutura, funcionalidade, comportamento e interação terão de ser avaliados perante as condições de uso, ou seja, perante as particularidades do ambiente social, econômico, financeiro, legal, geográfico, topológico, climatológico; em fim, perante a percepção da realidade. E é aí que se estabelece a dicotomia máxima do processo criativo: enxergar o conjunto geral e ao mesmo tempo perceber o detalhe. Só o olho da águia é capaz desta difícil tarefa: enxergar a área de cima, a mais ampla possível, e mirar na presa menor possível; se mirar apenas as grandes presas, baseado em estatísticas podemos afirmar: morrerá de fome. Temos que copiar da natureza, mais uma vez, esta habilidade. A habilidade de ver o todo e a parte seletivamente. Esta habilidade está intimamente ligada à capacidade de se ajustar rapidamente ao ambiente, à situação que nos encontramos, a distância entre o nosso objetivo e a posição presente, graduando o foco de nossa percepção.
O que desejar desenvolver projetos que apóiem a segurança, que contribuam realmente para a defesa da sociedade, do ponto de vista de sua eficácia, terá de observar este preceito: o de avaliar a sua inserção no contexto social e a de avaliar a sua operabilidade em uma extensa gama de situações, previsíveis e imaginárias. Será realista e visionário, terá de ser humilde e corajoso, terá de perceber a grandeza da visão das alturas e a paixão pelos detalhes.

Não temos torres tão grandes para proteger, não temos a riqueza ostensiva a defender, mas temos uma população que deseja desesperadamente alcançar níveis mínimos de cidadania e civilidade, deixando de ser escrava de traficantes, malfeitores e milicianos que cresceram em meio à ausência do direito, em meio à ausência da justiça, desfeita pelo arbítrio imposto de fora para dentro durante toda uma geração; arbítrio fomentador da impunidade que alimentou o verme da corrupção que devora as nossas entranhas.

O crack acabou chegando aqui; nem imaginava, há mais de trinta anos atrás, que eu mesmo iria participar de um combate que começou caminhando com um velho guarda portorriquenho lá no lado de cima do planeta. Diria para ele como epitáfio: El caminar hace el camino.

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