sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Abaixo a Pedagogia, (uma mensagem aos pedagogos)

De eleições já falamos, cabe agora seguir com a educação e a segurança como tema; daí ter retirado este texto de algum escrito que já me parece antigo, mas que serve para inaugurarmos uma nova fase "Segurança e Educação", pois estas são produtos mútuos de civiliuzação. Espero que apreciem.
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O título aqui não se trata de uma manifestação revolucionária, jamais pude vê-lo em alguma passeata; seja em 1968 ou agora, seja em Paris ou Rio de Janeiro, ou São Paulo, ou Tókio. Mas não posso dizer que não se trata de um pensamento revolucionário, é sim. Mas de uma revolução que já vem se construindo em cima da antiga forma de ver a sociedade educadora, onde ministrar conhecimento, passava por transferir informação, ou dados e, dependendo da competência ou do bom humor do professor ou da professora, estimular a pensar, liberar as competências naturais sedimentadas por milhares de gerações, ainda que não tão letradas, mas que sofreram, erraram e aprenderam a sobreviver e a evoluir, e ainda instigar a curiosidade. Tal revolução vem ocorrendo desde o teclado do computador até o acesso a rede internet, onde muito se vê, muito se ouve, muito se comunica e muito se informa. Tudo em uma velocidade impossível de ser emulada pelo ensinante, esteja este em uma rica instituição de ensino das grandes capitais ou em uma remota escola rural, ou até em uma estação de trabalho coletiva na praça do vilarejo. A inclusão digital vem crescendo quase que de forma independente até da vontade daqueles que tem como missão instituí-la e mais ainda das pessoas ensinantes. Tudo isto por um único fato, é que na rede probabilística virtual, na web, o aprendizado se faz pela imitação das conexões neurais. Ela, a rede internet, imita as conexões neurais construídas por processos probabilísticos, fazendo então com que a construção do conhecimento, através da busca da informação, “googles” e outras formas, se faça por processos mais próximos ao do aprendente e plasticamente mais adequados, com isso de forma mais rápida e seletiva, sem ter que passar pela estranha epistemologia criada pelo ensinante. O que muito freqüentemente se faz de forma dolorosa, porque punitiva: aprendeu, muito bem, não aprendeu, zero. É preto ou branco. Sem espaços para novas tentativas, áreas cinzas, novas estratégias, novas abordagens. Afinal, como adequar um único processo ensinante para trinta (às vezes mais) diferentes seres humanos aprendentes fechados dentro de uma sala?

Gostaria até de repetir Dimantas[1], “não sou pedagogo”, mas aprendi com eles, o que fazer. Nem posso dizer que o que não aprendi foi por culpa deles, se não pela minha própria malandragem, diria Bezerra da Silva. Mas muito do que não consegui aprender pela forma tradicional, com ou sem esforço do ensinante e do aprendente, eu mesmo, consegui fazê-lo de forma rápida, talvez nem tanto consistente, através do que garimpei na internet nos sítios de livre busca e informação. Poderia citar um sem número de conceitos matemáticos, sociológicos, históricos que consegui capturar baseado apenas na curiosidade estimulada e favorecida pela enorme oferta de informação; comportamento muito semelhante aquele da fome diante de uma mesa farta e variada; a exposição tentadora do conhecimento, fácil de ser construído pela informação abundante e diferenciada, e em boa parte das vezes até inalcançável dado a imensidão das potenciais respostas, mas lá presente. A mente sabedora desta disponibilidade constrói então, por métodos naturais registrados em estratos vagais, uma forma heurística de busca, até satisfazer seu apetite, tal como faria o predador na busca pela sua presa. Aliás, como já o fizemos com sucesso há milhares e milhares de anos atrás; sendo bem sucedidos então, memorizamos a estratégia de busca que acabou se explicitando nos famosos e eficazes algoritmos dos “googles” e semelhantes. Entretanto ocorre que o aprendizado via máquina de busca, depende apenas da intencionalidade do aprendente. A máquina não faz o mínimo esforço em favor da intencionalidade, tampouco tem um compromisso explícito para este fim, apesar de implicitamente os criadores da tecnologia tivessem a intenção e motivação para fazê-lo. Aí então aparece a questão fundamental que deverá ser respondida pelos pedagogos: - será possível construir uma pedagogia distante da tecnologia? Esta questão está sendo colocada não como uma libelo acusatório. A pedagogia como saber estruturado não é passível de acusação ou de elogio, a pedagogia a que me refiro é aquela assumida pelos seus profissionais. Estes sim, terão de assumir cada vez mais a sua condição de ensinante intencional e não um veículo de informação para o aprendente. Cada vez mais esta posição de repassador de informação será assumida pelos sistemas eletrônicos. Seu engajamento na intencionalidade do aprendente terá de ser inteligente, técnica e ainda emocional, pois sem emoção perde para a máquina, como já tinha se observado desde a difusão da televisão. Certa época dava aula noturna em uma faculdade de administração e tive que sofrer a competição desigual com as moças maravilhosas da novela Roque Santeiro. Tive de me passar por Sinhozinho Malta para me engajar no emocional e percebi então que a competição tramava a meu favor; a acumulação de bens, o controle de inventário, a política de pessoal, o planejamento financeiro passavam então a ser os elementos que colocavam o personagem da novela como estímulo a resposta aprendente, pois a punição da nota pouco ou nada podia fazer contra os encantos das personagens e a imensa qualidade artística do elenco. O que estava escrito no Manual do Professor pouca valia tinha para garantir a intencionalidade do aprendente. Estabelecia-se ali, muito antes do advento da internet, uma complexa construção de uma pedagogia inclusiva, onde, não apenas a tecnologia, mas a arte, arquitetavam, em conluio, uma estratégia para vencer. Vencer o descaso, vencer o cansaço da aula noturna, vencer a distância que havia entre o “mundo acadêmico”, o mundo da nota, e o “mundo real”, o mundo de notas. Hoje esta experiência me serviu como base para alcançar a visão da complementaridade entre a “internet” e a “aula”, a complementaridade entre a pedagogia do “ensinante” e a pedagogia do “aprendente”, não mais restrita aos atores que se opõe; de um lado o que interpreta a teoria, e de outro, os que interpretam a realidade da prática. Aliás o fantástico Paulo Freire, mais do que pedagogo, visionário, assim via com décadas de antecedência[2]. Tivesse vivo, tenho certeza, já teria criado um jeito de enquadrar a internet em seus princípios pedagógicos: a colaboração, a união, a organização e a síntese cultural[3].

a. Colaboração - a ação dialógica só se dá coletivamente, entre sujeitos, "ainda que tenham níveis distintos de função, portanto de responsabilidade, somente pode realizar-se na comunicação" (p.197);

b. União - a classe popular tem de estar unida e não dividida, pois significa "a união solidária entre si, implica esta união, indiscutivelmente, numa consciência de classe" (p.205);

c. Organização - "[...] é o momento altamente pedagógico, em que a liderança e o povo fazem juntos o aprendizado da autoridade e da liberdade verdadeiras que ambos, como um só corpo, buscam instaurar, com a transformação da realidade que os mediatiza" (p.211);

d. Síntese cultural - consiste "na ação histórica, se apresenta como instrumento de superação da própria cultura alienada e alienante". "[...] faz da realidade objeto de sua análise crítica" (p.p.214 -215).

(os grifos são meus)

Estes quatro elementos (colaboração, união, organização e síntese cultural) poderiam perfeitamente se servir da internet pois os atributos “comunicação”, “união solidária”, “realidade mediatizante” e “análise crítica” estão presentes na construção desta rede. Logo o pedagogo da atualidade terá a seu favor, não somente a receita de Paulo Freire mas também os recursos para aviá-la na intenção de curar este mal da educação que assola o país. Assim como não é a medicina que cura o doente mas sim o médico, não será a pedagogia que irá curar este mal, mas o pedagogo. Cabe a este se imbuir da missão, da intenção e da técnica, pois sem ela haverá apenas boas e desastrosas intenções; nem dá para transferir para a pedagogia as virtudes ou as falhas do aprendizado; inexoravelmente estará, sentado diante do teclado do computador, ligado na internet, e mesmo na sala de aula praticando os ideais do Mestre Freire:

o O amor ao mundo e aos homens como um ato de criação e recriação;

o A humildade, como qualidade compatível com o diálogo;

o A fé, como algo que se deve instaurar antes mesmo que o diálogo aconteça, pois o homem precisa ter fé no próprio homem. Não se trata aqui de um sentimento que fica no plano divinal, mas de um fundamento que creia no poder de criar e recriar, fazer e refazer, através da ação e reflexão;

o A esperança, que se caracteriza pela espera de algo que se luta;

o A confiança, como conseqüência óbvia do que se acredita enquanto se luta;

o A criticidade, que percebe a realidade como conflituosa, e inserida num contexto histórico que é dinâmico.

Estes ideais, não importa a natureza dos conflitos da sociedade, não importa quão avançada a tecnologia esteja, tão veloz a internet trafegue pelo mundo, tão eficaz sejam as máquinas de busca, serão eternos como o homem. A pedagogia terá de abraçá-los. Portanto posso dizer: Abaixo a pedagogia, viva o pedagogo.



[1] Hernani Dimantas é coordenador do Laboratório de Inclusão Digital e Educação Comunitária da Escola do Futuro - USP. Articulador do MetaReciclagem e editor do comunix. – ver Le Monde Diplomatique ( http://diplo.uol.com.br/ )

[2] De teoria, na verdade, precisamos nós. De teoria que implica uma inserção na realidade, num contato analítico com o existente, para comprová-lo, para vivê-lo e vivê-lo plenamente, praticamente. Neste sentido é que teorizar é contemplar. Não no sentido distorcido que lhe damos, de oposição à realidade [...] (Freire, 1979, p.93) .

[3] Freire, Paulo. Educação como prática da liberdade (1979), Paz e Terra. Rio de Janeiro
_______. Pedagogia do Oprimido. (1983). Paz e Terra. ( Coleção O Mundo, Hoje,v.21).